Lei Magnitsky: sanção a Alexandre de Moraes expõe dilema dos bancos e tensão EUA-Brasil
set 4, 2025
joice joicinha
por joice joicinha

O que é a Lei Magnitsky e como ela chegou ao Brasil

O que era um instrumento jurídico voltado a punir violações graves de direitos humanos virou peça central da diplomacia econômica dos EUA — e um pesadelo para bancos mundo afora. A Lei Magnitsky, criada em 2012 após o caso do advogado russo Sergei Magnitsky, ganhou alcance global em 2016 e, desde então, tem sido usada para congelar bens, barrar vistos e isolar financeiramente autoridades e empresários acusados de corrupção ou abusos. Não é retórica: quando a lei entra em cena, o sistema financeiro fecha portas em minutos.

Magnitsky descobriu um esquema de fraude fiscal bilionário, foi preso e morreu em 2009 após maus-tratos e negligência médica em Moscou. O episódio mobilizou o investidor Bill Browder, que transformou a indignação em lobby político. O resultado: primeiro, uma lei voltada à Rússia; depois, a versão global, ancorada por ordens executivas que autorizam o Tesouro dos EUA a bloquear propriedades e proibir qualquer transação envolvendo “pessoas dos EUA” (bancos, empresas e indivíduos sujeitos à jurisdição americana).

Como isso funciona na prática? A engrenagem fica sob a alçada do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC), do Departamento do Tesouro. Quando um nome entra na lista de Nacionais Especialmente Designados (SDN), todo ativo que possa ser alcançado por jurisdição americana é “bloqueado” — em outras palavras, congelado e indisponível. Transações em dólares que toquem no sistema de compensação nos EUA entram automaticamente no radar. E há a “regra dos 50%”: empresas controladas (direta ou indiretamente) em 50% ou mais por um sancionado também ficam, por tabela, bloqueadas.

Esse arcabouço saltou do manual para a vida real do Brasil em 30 de julho de 2025, quando o Tesouro americano anunciou sanções ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes sob a base legal da Global Magnitsky. Segundo a nota oficial, Moraes teria usado o cargo para autorizar detenções arbitrárias e reprimir a liberdade de expressão. A medida veio dias após o Departamento de Estado revogar o visto dele e de familiares. Na fala divulgada pelo governo americano, o secretário do Tesouro, Scott Bessent, disse que Moraes “assumiu para si o papel de juiz e júri em uma caça às bruxas ilegal”.

O movimento elevou a temperatura de um tema já sensível: Moraes conduz processos ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro e a redes de desinformação, o que sempre colocou sua atuação no centro do debate público brasileiro. Com a sanção, o caso saiu do âmbito jurídico doméstico e entrou de cabeça no tabuleiro da política internacional.

Há precedentes? Sim. O OFAC já sancionou magistrados e membros do Judiciário em outros países. Em 2017, por exemplo, integrantes do Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela foram alvo de sanções por “usurpar” funções da Assembleia Nacional. Em 2021, autoridades judiciais da Nicarágua entraram na lista por restringir direitos e perseguir opositores. A lógica por trás é a mesma: punir indivíduos por atos que violem salvaguardas democráticas ou direitos fundamentais.

O problema é que a ferramenta virou alvo de críticas por suposta aplicação seletiva. Transparência Internacional – Brasil questionou o critério ao comparar o caso com a manutenção de relações próximas com líderes acusados, como Nayib Bukele, em El Salvador. Outro ponto recorrente é a inconsistência: em governos anteriores, nomes foram retirados da lista apesar de acusações robustas, como o caso do ministro húngaro Antal Rogán. Esse contraste alimenta a percepção de que a lei, às vezes, opera mais como braço de política externa do que como escudo universal de direitos humanos.

Mesmo com a polêmica, uma coisa não muda: quando a OFAC sanciona, o sistema financeiro se move. Para quem lida com pagamentos internacionais, custódia, fundos, cartões, seguros e trade finance, o risco de violar sanções — mesmo sem querer — vira assunto de sala de crise.

Por que os bancos estão em um dilema real

A sanção a uma figura de alto escalão como um ministro do STF liga alarmes simultâneos em agências de risco, departamentos jurídicos, áreas de compliance e tecnologia da informação. O primeiro passo é mecânico e imediato: bloquear ativos alcançáveis sob jurisdição dos EUA, travar transações em processamento, atualizar listas internas e alertas, e disparar revisões de clientes (KYC) e contrapartes que tenham vínculos diretos ou indiretos com o sancionado.

Na prática, a triagem começa com um batalhão de filtros: varredura de nomes, CPFs, passaportes, endereços e entidades ligadas, cruzando com a regra dos 50%. Aparecem falsos positivos? Muitos. Nomes comuns, homônimos, abreviações e erros de digitação geram filas de casos para revisão manual. É aí que entra o dilema: congelar demais causa atrito com clientes e pode gerar litígios; congelar de menos abre margem para uma violação de sanções — e multas do Tesouro americano não são leves.

Outro ponto espinhoso: o que fazer com transações em reais entre duas instituições brasileiras em que não há dólar envolvido? Se não há “toque” no sistema americano, a letra fria da lei pode sugerir que o risco é menor. Só que, na vida real, bancos com presença nos EUA, acesso a mercados de capitais em dólar ou dependentes de correspondentes em Nova York tendem a aplicar o padrão mais conservador. Em casos de alto perfil, o “de-risking” fala mais alto: o banco evita, mesmo que não esteja legalmente obrigado, qualquer relação que possa chamar atenção da OFAC.

Isso vale para quase tudo: transferência eletrônica, abertura de conta, renovação de crédito, custódia de títulos, fundos de investimento, seguros, derivativos e até pagamentos de cartão que passem por redes internacionais. Fintechs, cooperativas de crédito e corretoras entram no mesmo pacote. E não é só o “cliente primário” que preocupa. Parceiros, advogados, consultores e empresas do entorno podem, sem querer, cair na malha fina se houver indícios de que atuam “em nome ou benefício” do sancionado.

O risco jurídico vai além do bloqueio. A OFAC pune quem “causa” uma violação por meio de terceiros, quem “facilita” a burla de sanções e quem estrutura operações para “evadir” controles. Num cenário de personagem público, com forte exposição midiática, a tolerância a erros despenca. Qualquer exceção precisa de base legal (licença geral ou específica). Sem isso, vale a regra rígida: melhor parar, reportar e documentar do que explicar depois.

Três frentes viram prioridade imediata nos bancos:

  • Governança: criação de comitê de crise, reporte ao conselho, linha direta com jurídico e auditoria. Decisões precisam ser rastreáveis.
  • Tecnologia: atualização de listas SDN, calibragem de filtros, monitoramento contínuo e registros auditáveis. Cada alerta precisa de trilha.
  • Negócios: suspensão preventiva de operações sensíveis, revisão de mandatos fiduciários e comunicação clara com clientes e parceiros.

Há também o efeito reputacional. Ao sancionar um ministro do STF, os EUA colocam um holofote sobre o sistema de Justiça brasileiro. Para bancos, isso significa responder a investidores e auditores sobre exposição a risco político e regulatório. Fundos estrangeiros podem reforçar cláusulas de compliance, e correspondentes internacionais podem exigir garantias contratuais extras.

O caso bate em outra porta: a diplomacia. Sanções assim não ocorrem no vácuo. Elas influenciam pautas comerciais, cooperação jurídica e conversas sobre segurança digital e plataformas. Em Brasília, a reação tende a vir em camadas: nota oficial, avaliação de impactos e, dependendo do desdobramento, tentativas de negociação técnica com Washington — por exemplo, para limitar efeitos colaterais em contratos públicos ou asseguradoras. Nem sempre dá certo, mas é o roteiro clássico.

Para além da disputa política, há perguntas práticas que bancos e empresas já fazem:

  • Posso manter contratos já assinados? Só com análise caso a caso. Se houver qualquer pagamento em dólar, uso de instituição americana ou benefício direto ao sancionado, o risco sobe muito.
  • E se eu for uma empresa só no Brasil, sem operação nos EUA? A lei pode não te alcançar diretamente, mas o seu banco, seu fornecedor de tecnologia, sua bandeira de cartão ou o banco correspondente podem estar sob jurisdição americana.
  • Existe chance de “licença” liberar operações específicas? Em algumas sanções, o Tesouro emite licenças gerais. Em outras, é possível pedir licenças específicas. Até que haja licença, a trava fica.
  • Família entra automaticamente? Não. Visto é tema do Departamento de Estado; sanções financeiras dependem de listagem pela OFAC. Mas relacionamentos com familiares tendem a ficar sob escrutínio reforçado.

Críticos da medida apontam o risco de politização. Quando a sanção recai sobre uma autoridade de um Poder da República, a linha entre defesa de direitos humanos e interferência externa fica mais fina. Transparência Internacional – Brasil chamou de “alarmante e inaceitável” o uso “seletivo” da lei e cobrou critérios claros. Essa reação ecoa um debate mais amplo: até que ponto sanções unilaterais melhoram a proteção de direitos versus criar distorções geopolíticas?

Quem trabalha com compliance olha menos o debate filosófico e mais os checklists. Em mesas de risco, o que pesa é: quais exposição e materialidade? Há contas custodiadas? Existe participação societária em empresa estrangeira? Há fundos com mandatos ligados? Há seguros de responsabilidade civil ativa? Cada sim acende uma luz. E, no Brasil, uma particularidade complica: a malha de pagamentos em dólares e a dependência de infraestruturas globais. Mesmo operações 100% locais, se conectadas a provedores no exterior, podem sofrer bloqueios operacionais indiretos.

Historicamente, a OFAC não precisa aplicar “sanções secundárias” formais para produzir efeito. O medo de perder acesso ao sistema financeiro americano costuma bastar. Bancos preferem errar pelo lado da cautela e fazer “offboarding” de clientes e parceiros que elevem a temperatura. Isso vale até para quem discorda da sanção. O raciocínio é simples: nenhuma receita compensa uma multa de compliance e o dano reputacional que vem junto.

O caso também serve de alerta a executivos públicos e privados: viagens, palestras, consultorias e presença em conselhos internacionais ganham uma camada inesperada de risco. Visto suspenso significa embarque negado. E, se houver bloqueio financeiro, despesas rotineiras ligadas a cartões, hotéis, taxas e diárias podem travar. Empresas que organizam eventos e missões no exterior precisam revisar listas de convidados e fluxos de pagamento com lupa.

Do lado do mercado, investidores olham para três sinais: i) se haverá escalada (novas listas, empresas associadas, parceiros), ii) se o governo brasileiro buscará respostas jurídicas internacionais ou mecanismos de contestação, iii) se surgirão licenças que delimitem exceções e reduzam incertezas. Qualquer indicação concreta muda preço de risco, apetite de crédito e condições de financiamento.

Há lições de outros casos. Na Venezuela, a sanção a magistrados levou bancos regionais a encerrar relações com dezenas de entidades públicas por medo de “contágio de risco”. Na Nicarágua, seguradoras internacionais reduziram coberturas para contratos governamentais após a inclusão de autoridades no SDN. Em ambos, o primeiro impacto foi sobre pagamentos externos; o segundo, sobre operações domésticas com algum componente internacional — softwares, gateways de pagamento, câmaras de compensação.

Onde isso pode parar? Em termos técnicos, a OFAC pode emitir FAQs, guias ou até licenças gerais para esclarecer escopos. Em termos políticos, cabem gestos diplomáticos, pedidos de revisão e tentativas de recomposição. O que não muda é a rotina de banco: se o nome está na lista, a instituição tem de provar que sabe, que travou, que analisou e que reportou. O resto é narrativa.

Enquanto isso, departamentos de compliance no Brasil revisam cadastros de Pessoas Politicamente Expostas (PEPs), ajustam motores de triagem e reavaliam exposição indireta. Escritórios de advocacia montam times para responder a comunicações internas, orientar conselhos e, quando necessário, pedir licenças específicas ou esclarecimentos ao Tesouro americano. E equipes de tecnologia correm para evitar que um falso positivo trave operações legítimas — sem abrir brechas para uma transação errada passar.

O recado que reverbera desde 2012 permanece o mesmo: sanções não são apenas um instrumento de pressão política, são uma linguagem que o sistema financeiro aprendeu a entender — e a temer. Quando essa linguagem é acionada contra uma autoridade do Judiciário brasileiro, o sinal que chega às mesas de decisão dos bancos é claro: cuidado redobrado, documentação impecável e tolerância zero a zonas cinzentas.