O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) começou a enviar avisos a mais de 177 mil lares de todo o país, exigindo a devolução de R$ 478,8 milhões que foram pagos de forma indevida durante a pandemia. As notificações, que se espalham desde março de 2025, chegam por SMS, WhatsApp, e‑mail e o aplicativo Notifica, e dão ao contribuinte um prazo de 60 dias para regularizar a situação. Quem não cumprir o prazo corre o risco de ser inscrito na Dívida Ativa da União e no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados (Cadin), o que pode comprometer o acesso ao crédito por anos.
O Auxílio Emergencial foi criado em 2020 como resposta emergencial à crise sanitária provocada pela COVID‑19. Na época, o benefício chegou a mais de 67 milhões de brasileiros, com pagamentos mensais de até R$ 1.800. A ideia era garantir renda mínima para quem perdeu trabalho ou viu a renda cair drasticamente.
Com o passar dos anos, a parcela de beneficiários diminuiu, mas o programa continuou ativo até o fim de 2023. Quando o governo encerrou as novas dispensas, iniciou uma revisão dos cadastros para identificar pagamentos que não cumpriam os critérios estabelecidos. O que se seguiu foi um dos maiores processos de reconciliação fiscal da história recente do país.
Segundo Érica Feitosa, Diretora do Departamento de Auxílios Descontinuados do MDS, o objetivo é recuperar recursos de forma “justa e rápida”. "A devolução dos valores será feita nos casos em que identificamos inconsistências, como vínculo de emprego formal ou renda familiar acima do limite legal", explicou a funcionária em entrevista à imprensa.
O Ministério adotou o Decreto nº 10.990/2022 como base legal. Esse decreto define que a prioridade nas notificações será dada a quem recebeu valores mais altos ou demonstra maior capacidade de pagamento. Por isso, os primeiros avisos foram enviados a famílias que receberam mais de R$ 5 mil ao todo ou que possuíam histórico de renda relativamente alta.
Os órgãos regionais de assistência social, em conjunto com a Receita Federal, são responsáveis por gerar as listas de devedores e disparar as mensagens. O aplicativo Notifica, já usado para outras comunicações governamentais, garante que o cidadão possa confirmar o recebimento e acompanhar o status da devolução.
As regras de elegibilidade que geraram a devolução são bem específicas:
Aos olhos do Ministério, a maioria das famílias excluídas do pagamento indevido são aquelas que ainda constam no Cadastro Único, beneficiárias do Bolsa Família, ou que recebem menos de R$ 1.800 no total. Essas categorias permanecem isentas da devolução, mesmo que se enquadrem em algum dos critérios acima.
Quem deixar de devolver o valor dentro do prazo de 60 dias será incluído na Dívida Ativa da União, o que significa que o débito será cobrado judicialmente ou por meio de execuções fiscais. Além disso, o nome do devedor será inserido no Cadin, o cadastro que banha o cidadão de conseguir empréstimos, cartões de crédito ou até mesmo locações de imóveis.
Especialistas em direito tributário alertam que a inscrição na Dívida Ativa pode acarretar multas de 10% sobre o valor devido e juros de mora de 1% ao mês. "É um caminho que o governo prefere evitar, mas a lei está clara: a inadimplência gera restrição de crédito", afirma a advogada Ana Lúcia Martins, da OAB/DF.
Do ponto de vista macroeconômico, recuperar quase meio bilhão de reais pode parecer pouco, mas o gesto tem simbolismo forte. Primeiro, demonstra que o Estado está atento ao uso correto dos recursos públicos e à necessidade de evitar desperdícios. Segundo, a ação pode gerar um efeito cascata, estimulando outros órgãos a revisarem programas sociais e identificarem possíveis superfaturamentos.
Para as famílias impactadas, a situação é delicada. Muitos dos beneficiários que receberam valores indevidos são pequenos comerciantes ou trabalhadores informais que ainda dependem da renda extra. A devolução pode representar um choque de caixa. Por isso, o MDS está disponibilizando linhas de parcelamento em até 12 vezes sem juros, como forma de amenizar o impacto.
Essa medida também levanta questões sobre a efetividade dos filtros de elegibilidade nos programas sociais. Alguns analistas sugerem que a falta de integração entre bases de dados – como a da Receita Federal, do INSS e do Cadastro Único – contribuiu para os pagamentos equivocados.
O Ministério afirma que continuará enviando notificações até atingir a meta de 100% de recuperação. A expectativa é que, até dezembro de 2025, o valor total devolvido supere os R$ 400 milhões, embora a meta final ainda seja o montante completo de R$ 478,8 milhões.
Um dos grandes desafios será manter o equilíbrio entre a cobrança rigorosa e a preservação da confiança dos cidadãos nos programas sociais. "Não queremos que a população veja o auxílio como uma dívida, mas como um direito que foi concedido em momento de necessidade", concluiu Érica Feitosa. O debate sobre possíveis ajustes nos critérios de elegibilidade do Auxílio Emergencial deve continuar nos próximos meses, principalmente em preparação para eventuais crises futuras.
Quando o programa foi lançado, o Brasil enfrentava desemprego recorde e queda abrupta no PIB. O governo federal destinou cerca de R$ 300 bilhões ao fundo do Auxílio, distribuídos em três fases ao longo de 2020 a 2023. A rapidez na implementação ajudou milhões a manterem a cesta básica, mas também deixou brechas que hoje resultam em devoluções.
Em 2022, o Tribunal de Contas da União (TCU) já havia apontado falhas de controle e recomendado a criação de um mecanismo de auditoria automática. Essa recomendação serviu de base para o Decreto nº 10.990/2022, que trouxe regras mais rígidas para análise de elegibilidade.
Deve devolver quem recebeu o benefício apesar de ter vínculo formal de emprego, receber benefício previdenciário, ou ter renda familiar acima dos limites estabelecidos (duas ou três salários‑mínimos, conforme a fonte). Famílias inscritas no Cadastro Único, beneficiárias do Bolsa Família e quem recebeu menos de R$ 1.800 continuam isentas.
A notificação oficial indica a data de envio. A partir desse dia, o cidadão tem exatamente 60 dias corridos para pagar integralmente ou solicitar parcelamento. Após esse período, o débito é encaminhado à Dívida Ativa da União.
O nome será inscrito na Dívida Ativa da União e no Cadin, o que impede a obtenção de crédito, financiamentos e até aluguel de imóveis. Além disso, incidem multas de 10% e juros de 1% ao mês sobre o valor devido.
Sim. O MDS oferece parcelamento em até 12 vezes sem juros, desde que o cidadão formalize o pedido dentro do prazo de 60 dias. O parcelamento não elimina a inscrição na Dívida Ativa, mas impede a cobrança judicial imediata.
Embora o valor recuperado seja menos de 1% do total já desembolsado, ele reforça o princípio de responsabilidade fiscal e pode ser redirecionado para outras áreas vulneráveis, como saúde e educação, especialmente em um momento de ajustes fiscais.
Verônica Barbosa
outubro 9, 2025 AT 00:26É inconcebível que se explore quem já foi atingido pela crise.